Contos

Mi Buenos Aires querido

Cíntia Moscovich


Talvez uma das vistas mais encantadoras para quem chega seja a que se tem onde as avenidas Santa Fé e 9 de Julio se beijam. A 9 de Julio, la más ancha del mundo, deve ser atravessada em três estágios, com pausas junto aos semáforos instalados nos canteiros centrais, deixando passar o corso de carros e ônibus. Nas épocas de infância, quando meu pai reunia toda a família para visitar la gran ciudad, atravessar a 9 de Julio equivalia a ter acesso às delícias da confeitaria Jockey Club e a testemunhar procissões de Ford Falcon. Todos rotos. Por razões obscuras, as mesmas que fazem, ainda hoje, rodar os falcons, houve-se por bem batizar com nomes distintos as duas pistas que correm flanqueando o leito principal da Avenida 9 de Julio: a Carlos Pellegrini, de um lado e, em oposição, a Cerrito. Os três estágios que devem ser obedecidos pelos pedestres correspondem, por força de lógica, a estas divisões mui arbitrárias ou que, contam os mais velhos, corresponderiam aos antigos nomes de ruas que ali existiam e cujos prédios foram aniquilados para facilitar o escoamento da civilização. Quien lo puede decir? Para o visitante, o melhor é considerar o conjunto como um todo homogêneo e perigoso. A Avenida 9 de Julio, a que tem nome e dois sobrenomes. A mais larga do mundo.

Como o ônibus vinha pela avenida de comércio caro e, sobretudo, de prédios veneráveis que é a Santa Fé, dei meia-volta e enterrei os olhos na janela, me preparando para o momento nervoso e urgente. As duas noivas beijaram-se e o obelisco da 9 de Julio, para festejar, apareceu em fulgor branco no fundo para, logo depois, se esfumar numa imagem varrida. Um beijo roubado. A familiaridade com a concupiscência dessas ruas e avenidas sempre me foi essencial para entender a alma portenha. E a familiaridade com a concupiscência de seus habitantes também.


Naquela semana não haveria nem tempo nem ânimo para as incursões turísticas. Portanto, tratei de me contentar com a visão do encontro amoroso a que tivera direito na chegada e a me dedicar em tempo integral ao curso ministrado na Faculdade de Medicina. Era uma terça-feira. e eu já havia passado o dia inteiro com pipetas, tubos de ensaio, bicos de bunsen, microscópios, um computador meio maluco e um lio de prosódias. Tudo o que eu mais desejava era um bife de chorizo com papas naturales na parilla al carbón perto do hotel. Ai, que eu me morria por um bife de chorizo, a posta de carne alta, contornada por uma faixa de gordura, as marcas da grelha barradas a fogo. Todas as pessoas que trabalharam até aquela hora no departamento de microbiologia estavam exaustas, e o maior desgaste fora causado, sem dúvida, pelas três línguas faladas no decorrer do dia — o português, o espanhol e o derivado capenga dessas duas, o portunhol. As duas colegas brasileiras que estavam comigo e tentavam se fazer entender naquilo de pedir un-pueco-de-cueca-cuela-en-un-cuepo tinham outros planos. Queriam porque queriam assistir a um show de tango. Elas que me perdoassem, mas show de tango só dali a vinte encarnações. As duas podiam ir, havia, por baixo, umas trinta casas de espetáculos, podiam pegar um táxi, podiam contratar os serviços de guia-leva-e-traz, podiam fazer o que quisessem e o que bem lhes aprouvesse. Eu é que não ia.

— Mas nós não falamos espanhol — argumentou uma delas.

E alguém precisava falar espanhol para ir a um show de tango? Tentei explicar que não havia mistério, os táxis eram confiáveis, os serviços de transporte das casas noturnas eram eficientes. Tudo se pode fazer em Buenos Aires, desde que com cuidado. Como em qualquer capital. O que não se pode, por exemplo, é fazer o cooper às duas da manhã nos bosques de Palermo, como não se pode fazer o mesmo no Parcão em Porto Alegre, no Parque Ibirapuera em São Paulo, no Central Park em Nova York ou no Bois de Boulogne em Paris. Expliquei e expliquei. Mesmo diante da argumentação além-fronteiras, que surpreendeu até a mim, as duas me assaltaram com a mais baixa das extorsões:

— E o prazer da companhia?

Foi o tempo de um banho e lá estávamos dentro do táxi, rumo a Santelmo. Havia me instalado no banco dianteiro, ao lado do motorista, e, assim, pude acompanhar o trajeto com atenção, desde a frente do hotel, na Maipu. O carro negro-amarillo nos afastava das cercanias da Córdoba, da Lavalle e da Corrientes, deixando para trás, sem alarde, as zonas mais familiares. Ninguém ignora que o Sul principia do outro lado da Rivadavia. As duas moças desconsideraram aquela fronteira mágica, instituída pela fantasia, e, sem aviso, entramos todos no Sur, o secreto miolo de Buenos Aires, que não tem nada a ver com o centro pomposo mostrado aos turistas.

La Ventana, a janela. Logo à entrada, o cartaz anunciava la prestigiosa cantante Maria del Carmen con su voz maravillosa. Eu, que herdei de meu pai a certeza de que depois de Virginia Luque tudo o mais era boludez, me dispus a pagar para ver. Não falei nada para as companheiras, mesmo porque elas nem olharam o cartel. Jantamos alguma coisa insossa, bem cobrada, era certo. A garrafa de vinho ainda ficou na mesa. Observei a turistada com as roupas habituais e com o falatório em tom de berreiro. Todos esperavam o espetáculo. Por achar oco o propósito, não avisei às minhas amigas que a maior atração ainda acontecia nas mesas da platéia. Bocejei justo quando os movimentos do palco se iniciaram.

O primeiro a tomar lugar foi o bandoneonista, um sujeito de idade vaga mas ao qual, com certa margem de acerto, pude atribuir uns trinta anos de tango. Vieram o violinista e o pianista, todos com a mesma idade imprecisa, todos com ternos pretos, camisas brancas, gravatas encarnadas, os cabelos abotoados de gomalina e verniz nos sapatos de bico fino. Cada um, a seu tempo, saudou o público com uma reverência curta e cansada. O pianista, depois dum rodopio na banqueta, instalou os dedos sobre as teclas. O violinista escorou o queixo na preciosa caixa de madeira, tomou o arco e encostou-o nas cordas. Todos no aguardo de alguma senha secreta. O bandoneonista colocou um trapo sobre a perna e apoiou ali o fole, calçando o punho esquerdo na correia junto aos botões. Com a mão oposta, acompanhada de um meneio de cabeça — a senha secreta que nem tão secreta era —, convidou os parceiros para o tango. O pé direito dele e do violinista marcaram o compasso binário. O bandoneón soprou, enchendo a sala de plangência. Reconheci os três acordes iniciais: Mi Buenos Aires Querido. Ah, depois de Virginia Luque, quem se atreveria?

Maria del Carmen entrou no pequeno palco agarrada ao microfone, demorando-se, como convinha, nos is de mi e de querido. Foi no i de querido que consegui apreciá-la melhor. A sílaba se alongou num falsete que, confesso, como quase tudo confessarei, me atou os sentidos. O piano e o bandoneón tremeram em novo pranto, seguidos com rigor pelo violino, e os três prepararam um colchão para que Maria del Carmen se esbaldasse. Cuando yo te vuelva a ver, e colocou-se, finalmente, na marcação de honra, no meio do palco, lambida pelo facho de luz. O fôlego se me foi, a vida se me veio, e pensei que aquela deusa nascera para os trinados. Os cabelos nigérrimos presos por um largo pente, o vestido escarlate escorregando pelo corpo esbelto, as pernas de pura carne entrevistas nas largas fendas laterais, cobertas pelo sutil das meias negras, os pés arrematados por sapatos de tacos altos. El farolito de la calle en que naci fue sentinela de sus promesas de amor. A mão direita empunhava o microfone junto à boca, a mão esquerda se espalmava, dramática, perto do rosto. Preciosa, escorregando pelo palco, chibatando o ar com o fio do microfone, revolvendo a dor portenha de todos os tempos. No habrá más penas ni olvido. Outra vez, o i de olvido se perpetuou e, quando o ar se esgotou, largou os dois braços na frente do corpo e dobrou-se ao meio, antecipando o agradecimento às palmas que viriam. A platéia aplaudiu. Não contive o impulso e me pus de pé, bradando minha admiração:

— Bravo, Carmencita!

Carmencita procurou, com a mão em pala para se proteger do holofote, a fonte de tão calorosa saudação. Estiquei os dois braços e ofereci minha minúscula e solitária ovação. As duas colegas me puxaram de volta para a cadeira, o que eu estava pensando?, e que intimidade era aquela com a cantora? Me servi do vinho. As duas não sabiam que estávamos no Sur, tierra querida, ancestral de todas as paixões. As duas não entendiam mais do que protozoários num microscópio. A virtuose sussurrou buenas noches no microfone e apresentou os companheiros da típica. Eu não conseguia tirar os olhos daquela diva e, muito menos, a mão do copo. Carmencita, Carmencita. Uma vez mais, um facho de luz, agora amarelo, dourou a cantante. Las tardecitas de Buenos Aires tienen ese que se yo, viste? Não, ela não faria isso, depois de Amelita Baltar, quem mais cantaria a Balada para un Loco? Salgo de casa por Arenales, lo de simpre en la calle y en mi. Sim, ela se atirava na balada, trapezista em salto mortal sem rede e a única segurança que lhe cabia era a queixa do bandoneón. Piazolava. Cheguei a me esquecer do vinho e me embebedei dela. Mais quatro números e se curvava com mesura, dividindo os aplausos com os músicos. Não me levantei com medo do reproche das minhas amigas, se bem que, tinha certeza, Carmencita merecia um outro bravo que eu pudesse lhe dar. As luzes se acenderam para que os trabalhos da cozinha não cessassem. Não acreditei quando a vi caminhando em minha direção.

— Me vas a invitar a una copa?

Claro que eu lhe pagava uma bebida, barris, tonéis do que ela quisesse. Fez sinal com a mão branca, apontando para a garrafa de vinho. Providenciei outra cadeira, outro cálice e outra garrafa, sob o olhar de estupefação de minhas companheiras. Carmencita sentou-se a meu lado, acendeu um cigarro e debruçou os grandes peitos sobre a mesa, soltando uma baforada em minha direção. Desviei o olhar do decote, fingindo que me esquivava da fumaça. Puxei assunto, disse-lhe o quanto eu e minhas colegas havíamos desfrutado. Muchíssimas gracias, ela respondeu, como se estivesse acostumada a lisonjas. E, como eu necessitasse conversar, contei a Carmencita — eu podia chamá-la assim, não podia? — do curso que estava fazendo, da minha paixão pelos bonairenses e, principalmente, como eu me impressionara pelo que ouvira. Ela, modesta, disse que era uma tonteria compará-la a Virginia Luque ou a Amelita Baltar. Ah, mas eu sabia que nem Virginia, nem Amelita, nem Libertad, nem Eladia, nem ninguém tinha aquela fúria no olhar. Solamente Carmencita.

A casa já se esvaziara e os garçons retiravam os restos da noite. Minhas colegas insistiram para que fôssemos embora. Será que elas não repararam que eu estava conversando com Carmencita? E daí que o curso continuaria no dia seguinte? Elas podiam ir, havia uma fila de táxis do lado de fora, eu garantia. As duas, que não entenderam o meu interesse pela tangueira, resignaram-se e foram tentar um táxi no olho da rua e, bons céus, longe de mim. Ficamos eu e Carmencita. Un ratito más e tenemos que irnos, aconselhou, secando a terceira garrafa de vinho. Sim, eu concordei, ficaríamos só um pouco mais. O pouco mais passou como passa o tempo para os encantados. Assim, ela me convidou a tomar um café com medias lunas.

O cortado no bolicho justo ao lado me refez do leve mareio. Ela compensou o desgaste do espetáculo com dois pedaços de fainá, aqueles expostos sobre o balcão, e mais um copo de vinho. Até as deusas tinham de comer, ponderei, e, assim, não me importei com a ferocidade com que ela se entregou à ceia. Fiz questão de pagar, enquanto Carmencita retocava o batom no caballeros. O damas tinha o aviso de no funciona. Saímos. Carmencita me conduzia pelas ruelas. O frio que vinha de todos os cantos era quase insuportável e ela me abraçou, oferecendo abrigo. Eu perdera a noção das horas, mas o claro cinzento do dia já se anunciava. Chegamos ao portão de uma casa, velha como são as casas do Sur. Sim, eu queria entrar. Mal fechou a porta e veio para um beijo, me tragando na mesma volúpia com que castigava os mordentes. E, com a mesma paixão com que entoava o tango, com a mesma lascívia das coxas no bailado, com a mesma sofreguidão dos gestos junto ao rosto, com a mesma luxúria da boca encarnada ao microfone, Carmencita me fez amor. Ela era tudo o que seus olhos prometiam.

No dia seguinte, me atrasei para o curso. Minhas colegas queriam saber o que havia acontecido. Não contei, não contaria jamás. Las tardecitas de Buenos Aires tienen ese que se yo, viste? E, assim, às seis da tardinha, saí correndo da faculdade, peguei o metrô e desci na 9 de Julio com a Corrientes, ali, bem ali, na esquina zero. Caminhei, voei, do obelisco até a Santa Fé, preferindo o lado da Carlos Pellegrini. Mais do que nunca em minha vida, amei Buenos Aires e aquelas cercanias desesperadas, com a certeza de que a cidade e seus pontos cardeais ensandecidos eram o centro de algum universo, aquele que só então eu descobria. Na esquina onde as duas avenidas se beijam, lá estava ela, hermosa, os cabelos revoando na sudestada, o corpo oculto por um tapado gris. Ela correu para mim e reprisamos o beijo que se dão as duas avenidas de meus encantos.

A 9 de Julio se deitou febril para nossa marcha e, na esquina com a Lavalle, a confeitaria Jockey Club nos lançou um olhar lúbrico. Apertei mais forte a mão de Carmencita e atravessamos a 9 de Julio, parando, com cuidado, junto aos semáforos. Ao fim, nos sentamos no Tortoni e pedimos dois cortados.

Carmencita de frente para mim e, às suas costas, a Rivadavia.

 

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